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Cruzamento

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Mensagem  Moggo Qua Out 13, 2010 12:05 pm

CRUZAMENTO


Este é um texto original. Se algum cretino meter na cabeça reproduzi-lo sem autorização, solto os estudantes de Direito que tenho presos na minha cave, e acreditem, eles são ferozes!
Considerem-se avisados.


O “Coiso” era um coração em ouro branco, seguro por um fio de prata, que estava naquele momento embrulhado em algodão, enfiado numa cintilante caixinha de alumínio e entalado entre uma lata de Sprite e o manual do automóvel, dentro do porta-luvas. O “Coiso” era a prenda de São Valentim/Aniversário/Cinco-Anos-de-Namoro do Martim para a Aninhas. A festa para onde este se dirigia, a alta velocidade por ter adormecido à frente da televisão e já estar quase dez minutos atrasado, era só a festa da Aninhas, embora para eles dois fosse as três coisas. Portanto, o “Coiso” era, oficialmente, só a prenda de aniversário. E bastava.
Martim não gostava de porcarias e bugigangas, apesar de até onde a classificação de bugigangas ia, aquela ser uma das mais caras. Custara-lhe todo o dinheiro do emprego do Verão, mais três meses de semanada e cinco horas a pedinchar dos pais. Não se daria ao trabalho se não fosse pela Aninhas. Ele não era de oferecer coisas, ou de comprar para a namorada coisas lamechas como colares com coração, mas tivera o azar de passar com ela por uma joalharia. Aninhas ficara imediatamente colada ao vidro da montra, com uma expressão que Martim sabia que significava que ia ter de abrir os cordões à bolsa. Tinham entrado.
Quando ficara a saber o preço real do “Coiso”, até ela se tivera de resignar. Era caro demais. No entanto, ele não esquecera o ar de desapontamento que fizera, e Martim jurara para si próprio que por muito pirosa que fosse, aquela era uma bugiganga que a Aninhas estaria a usar ao pescoço antes do Ano Novo. Com sorte, a visão da caixinha de alumínio até a faria perdoar que ele estava irremediavelmente atrasado. Embora não devesse esticar a corda.
Aninhas ainda vivia a quilómetros dele. Ela era sua namorada desde o sétimo ano, e Martim tinha perfeita consciência de que se uma relação tão comprida era possível, isso se devia a ela e não a ele. A Aninhas era uma miúda séria. Não se metia em problemas, e não gostava de joguinhos nem de abanar o rabo para outros, como faziam praticamente todas as raparigas que ele conhecia. Era, não que isso importasse no grande esquema das coisas, giríssima, e inteligente, e mais doce que um pudim de caramelo coberto com chantilly e xarope. Era perfeita. Era sua.
Martim, em troca, era-lhe mais fiel que um cachorro, tirando a parte de babar e cheirar traseiros. Amava-a com uma intensidade que o tempo, em vez de diminuir, intensificava. Ela era a sua namorada, a sua confidente, a sua melhor amiga. A vida dos dois já se encontrava planeada à sua frente: acabar o secundário, universidade, emprego, casar, comprar uma bonita vivenda com montes de janelas, ter 1,5 filhos, viver, envelhecer juntos, morrer, e se vivessem a vida virtuosa que a Aninhas planeava que levassem, dar um soco na cara do “Até que a morte os separe” e ficar juntos no céu. Claro, todos esses planos iriam por água abaixo se a Aninhas o largasse nessa noite, por não ter conseguido chegar à festa a tempo. Maldita TV! Com tantas noites para se deixar dormir, tivera de ser aquela em que…
Havia um cruzamento no caminho da casa dela, o ponto onde quatro estradas se juntavam à volta de uma rotunda. No centro da rotunda havia um grande bloco de granito, encimado pela estátua de um gajo de quem Martim nem sabia o nome. Uma personagem histórica qualquer, deduzia. Perguntaria à Aninhas mal chegasse. Ela saberia com certeza.
Ia a pensar nisso, e em como justificaria o atraso, quando um reflexo junto à estátua lhe capturou a atenção. Martim estreitou os olhos, interrogando-se se era impressão sua, ou se a personagem histórica anónima mexera. Censurou-se por pensar semelhante coisa. Devia ser um pássaro que se empoleirara lá, e a luz fraca da lua fizera-o confundi-lo com uma forma humana. Aves estúpidas. Faziam merda em tudo quanto era lugar!
SKKKRRRRRIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Martim travou e virou tão repentinamente que os pneus derraparam. O carro foi, desgovernado, em direcção à beira da estrada e só aí se imobilizou. Ainda agarrado ao volante, quase congelado, ele conseguiu mover a mão para a porta e abri-la, saindo aos tropeções para verificar os estragos. O carro era do seu pai, e este faria bifes com ele se o devolvesse com um só risco. Martim mal tirara a carta, e já tivera dificuldade em convencer os seus progenitores de que era um menino crescido e podia guiar sozinho. Uma mossa valer-lhe-ia a suspensão do privilégio de guiar até arranjar casa para si. Não podia arriscá-lo.
Felizmente para ele, o pequeno risco que se originara com aquela manobra era praticamente invisível, e com sorte, ninguém daria por nada. O mesmo já não podia dizer do outro carro, aquele que provocara a sua derrapagem em primeiro lugar. Não dera por ele antes, pois viera da direcção oposta, mas ao dar a curva à rotunda viu que do outro lado do bloco de granito havia um automóvel que fora de frente contra a pedra, espatifando-se todo de encontro à base da estátua. Martim hesitou em aproximar-se. Já vira suficientes filmes com explosões de carros para saber que talvez não fosse a melhor das ideias. Quando ao fim de instantes nenhum “CABUM!” se fez ouvir, e o veículo não deu sinal de ir fazer faísca, foi até ele passo ante passo, esforçando-se para ver se havia alguém no interior.
Os vidros eram fumados, e com a pouca luz que havia não sabia nem de que cor era o carro, se preto ou azul-escuro, nem se este era ocupado. Decidiu bater no vidro para ver se havia reacção de lá de dentro. Vendo que nada acontecia, estendeu a mão para a porta.
- BUU! – Martim deu um pulo e levou a mão ao peito. O grito quase o matara de susto, mas em vez de se desculpar, a pessoa que o dera só soltara uma gargalhadinha ao ver como ele reagira, antes de ficar séria. – Quem és tu e o que estás a fazer com o meu carro?
- O teu carro? – Ele examinou-a de alto a baixo, sem saber o que pensar. Pela altura em que chegou a examinar a cara, o seu coração já batia mais forte, e não era de susto. – Aquilo é…
- Sim, sim, o meu. Claro que já teve melhores dias…- Ela deu um riso que soou como as vozes de mil anjos, ou ao menos assim lhe pareceu. – É no que dá, não tomar atenção à estrada. Podia ter morrido ali. – Riu-se novamente, para mostrar que era uma piada. Martim não se riu. Ainda estava ocupado a interiorizar cada parte dela, a figura escultural, as botas pretas de cano alto e o vestido pérola que deixava pouco à imaginação, o cabelo liso e loiro que lhe dava pela cintura, a pele sem marcas e as feições que fariam chorar de inveja o rei dos escultores.
Ela era linda. Não havia palavra mais adequada. Linda.
- Hellooo!!! – Ela sacudiu a mão em frente da cara dele. – Acorda! Ficaste pasmado, ou quê?
- Ah…não. – Martim parou de se fixar no seu aspecto, e fixou-se no facto de que ela não apresentava feridas. – Tiveste sorte em não ficar magoada. Aquilo foi uma colisão feia.
- Nem me digas. Ainda estou à espera que a assistência chegue para tirar aquele treco dali, mas já passou uma hora e nada. – Ela sacudiu a cabeça, deixando-o momentaneamente hipnotizado pelo movimento dos seus cabelos, pela maneira como apanhavam os reflexos do luar. A mente de Martim já não estava no seu carro, junto com a caixa de alumínio que continha o “Coiso”, nem em Aninhas. Aliás, Aninhas quem? Quem era essa? Não, a mente dele voava para lugares longínquos. – Sou a Céu, aliás. E tu, és quem?
- Martim. – Respondeu este, sem pensar, e então, lembrando-se de algo, acrescentou: - Céu, é? Eu devia ter adivinhado. – A rapariga chamada Céu pestanejou.
- Ai sim? Porquê? – Ela acabava de saltar para cima do bloco de granito, apoiando-se nele e agarrando o braço da estátua para ficar ao nível dos olhos da personagem histórica anónima. A sua pose era a de uma dançarina, de uma acrobata. Martim ficou a olhar, embasbacado, até se recordar do que estivera prestes a dizer.
- Porque um anjo como tu só pode ter caído de lá. – A parte dele que ainda era o Martim da Aninhas, o Martim que detestava mandar bocas foleiras e as raparigas que as aceitavam, contorceu-se de nojo ao pronunciar aquilo que devia ser a frase de engate mais pirosa de toda a história. No entanto, esse Martim encontrava-se sufocado pelo Martim que se deixava encantar pela visão da Céu, e que desejava dizer tudo, piroso ou não, que lhe pudesse chamar a atenção para ele. Por isso ficou tão deliciado quando ela pareceu achar piada ao piropo.
Havia qualquer coisa que ele devia estar a fazer, tinha quase a certeza disso. Um outro lugar onde deveria estar, alguém que o esperava…algo a ver com um coração…
Mas tudo isso perdia significado quando posto ao lado do riso enfeitiçante da Céu.
- Anjo? Tem lá paciência. Mas acertaste na parte de cair, isso eu fiz. Foi há tanto tempo que nem me lembro de como é lá em cima, só de como dói aterrar. Tens lume?
- Lume? – Ele viu-a tirar um pacote de cigarros de um bolso que, apostava, ela nem tinha um segundo antes. O outro Martim, o que desprezava tabaco e aqueles que o consumiam, protestou à visão. O Martim que ele era presentemente achou a visão dela, parada ao pé da estátua e com um cigarro seguro entre os dedos, incrivelmente sexy. – Não, desculpa, não fumo.
- Pena. – Ela guardou o pacote outra vez. – Ei, se não tens mais nada que fazer, queres ficar comigo à espera que cheguem os tipos do reboque? Vai ser uma seca ficar aqui plantada sozinha, e nunca se sabe que género de esquisitóides podem aparecer entretanto. Sentia-me mais segura contigo aqui. – E fez-lhe olhinhos. Martim odiava raparigas que faziam olhinhos aos rapazes. Ele tivera uma educação muito rígida a esse respeito. Raparigas que usavam roupa como a da Céu, botas de cano alto e verniz vermelho, e lançavam olhares felinos a completos desconhecidos, eram raparigas fáceis que não valia a pena conhecer.
Mas ela…
- Claro. – Disse, imediatamente. Corou com a implicação de que a Céu o considerava alguém capaz de a proteger. – Eu não tinha nada para fazer, de qualquer das maneiras!
Aninhas, Aninhas, Aninhas….quem é essa? O nome soava-lhe familiar, mas não…
- Baril! – Ela animou-se logo. – Podemos esperar no teu carro, então? Está tanto frio cá fora!
O velho Martim comentaria, sarcasticamente, que ela só tinha frio porque ninguém devia sair à noite com tão pouca roupa como a que ela estava a usar. O novo Martim pensou “Céu+Carro+Eu=UAU!”. Ela desceu do bloco com um pulo, espantando-o com a sua elasticidade. Rindo, deu-lhe o braço e por pouco não o puxou na direcção do automóvel. Martim reparou que quando Céu se ria, era a sua cara toda que o fazia. O sorriso partia da boca, mas depois viajava até aos seus olhos, queixo e covinhas nas bochechas. Era um sorriso que iluminava. Muito como o de outra rapariga, a An…alguém, o seu nome não lhe ocorria.
Sentaram-se no carro, ele no lugar do condutor, ela no do passageiro. Reparou que ao entrar, a Céu fizera uma análise detalhada de tudo o que o carro continha, e, parecendo satisfazer-se, cruzou as pernas à sua frente. Martim achou que merecia um prémio pelo esforço que pôs em não olhar. A sua cara nunca antes estivera tão vermelha.
- És religioso? – Quis ela saber, a certa altura. Martim de início estranhou a pergunta, mas então viu que ela reparara no terço pendurado no espelho retrovisor.
- Um pouco. Sou crente, mas não vou à igreja, nem nada. Aquilo é do meu pai, o carro…- Honestidade nunca matara ninguém. -…é dele também.
-Ah. – Murmurou ela, agitando-se no assento. – Isso é bom. – Martim não procurou adivinhar porque era bom. Desesperava, tentando lembrar-se de como falar com uma miúda de uma forma que fizesse com que esta se interessasse por ele. Porque devia haver problema era algo que ignorava. Tinha experiência com raparigas, não tinha? Afinal, tinha saído com muitas ao longo da sua vida, já que nunca se deixara prender por essas criaturas ranhosas que eram as namoradas. Ele era um garanhão. Um conquistador. Um espírito selvagem, livre de amarras como amor, livre para cair sobre uma nova presa todas as noites. Céu seria só mais uma numa longuíssima lista. Era esperar para ver. Ela acabaria por ser sua.
- Ohhhh! – A mão dela foi para o porta-luvas, retirando de lá uma minúscula caixinha de alumínio, que segurou entre o indicador e o polegar. – Uma jóia para a namorada?
Martim piscou os olhos uma, duas, três vezes.
- Eu não tenho namorada. – As palavras caíram da sua língua sem que soubesse segurá-las, enquanto colocava uma mão sobre o peito e se perguntava o que seria aquela pontada que acabava de dar-lhe. Culpa? Mas culpa porquê? Não era mentira…era? – Isso é para uma…tia.
- Posso ver? – Inquiriu ela, com um toque de curiosidade a colorir a voz celestial. O Martim interior revoltou-se contra a ideia. O Martim exterior acenou, incentivando-a a ir em frente. Céu abriu a caixinha e desviou o algodão do caminho, tomando o máximo de cuidado possível ao pegar no colar pelo fio e balançá-lo por cima da sua cabeça, e sorriu ao ver o coraçãozinho. – Que fofo! Deves gostar mesmo da tua tia! – Martim rangeu os dentes. Mais tarde não saberia dizer porque o tinha feito. – Eu queria que os meus parentes gostassem assim de mim.
- Tens família aqui, ou vives por cá? – Interrompeu ele. Quanto mais depressa mudassem para outro tema que não o colar, mais feliz ele ficaria. Era um tópico que por alguma razão o incomodava.
- Não, estou só de passagem. Eu vivo mais abaixo. – Céu ainda brincou um pouco com a jóia, antes de a deixar cair na caixinha novamente. Pôs o algodão no lugar e devolveu-a ao porta-luvas, antes de continuar: - O meu pai pôs-me fora de casa há muito tempo atrás. Não falo com a minha família desde então, e para ser sincera, nem quero. São todos uns hipócritas armados em santos. Os meus irmãos, principalmente.
Martim tinha uma irmã mais nova. Brigar com ela era uma situação que não concebia. Também não concebia referir-se aos seus pais assim, com a quantidade de ódio que Céu punha no que dizia. Era evidente que o que quer que estes lhe tivessem feito, isso a afectara imenso. Com aquela raiva toda, nem parecia a mesma pessoa bem-disposta de há pouco.
- Não estás a fugir deles, pois não? – Brincou, esforçando-se por aliviar a atmosfera. Céu deu um jeito de cabeça e fez uma careta, desdenhando da ideia.
- De Miguel e Gabriel? Nem pensar! Eles armam-se em durões, mas lá no fundo são uns bebés.
- Miguel…Gabriel…Céu…- Começou ele, pensativamente. – Bela escolha de nomes. Há aí um tema? - Ela deu de ombros.
- É, manias do meu pai. Religioso até dizer chega, aquele tipo. Anda sempre com a mania que é Deus. E tu, que contas da tua família? Aposto que não pode ser mais louca que a minha.
- Ah…bem…- Não havia tanto assim para contar, na verdade. Pais normais, irmã normal, uma legião de tios, primos e outros parentes de diferentes graus, nada de escandaloso. Mas Céu parecia estar à espera que ele dissesse qualquer coisa escandalosa, e por isso inventou, esquecendo, como se nunca o tivesse pensado, que anteriormente tomara a decisão de ser honesto para com ela. Ela devia estar a inventar também, na parte em que dizia que a haviam expulsado. Martim não era capaz de engolir a imagem de um monstro capaz de pôr fora de casa uma rapariga tão maravilhosa como ela. O Martim interior que dissesse o que quisesse e entendesse sobre ele só a ter conhecido há menos de um quarto de hora, e não ter razão nenhuma para pensar que era maravilhosa para além do facto de ter mais pele à mostra que escondida. Céu era uma coisa…do outro mundo.
- Então…- Disse ela, mal ele se calou, a torcer-se por dentro com tanta mentira que acabava de mandar. – Os teus pais estão divorciados porque a tua mãe fugiu com o irmão do teu pai, e estás a ser criado pela tua irmã mais velha? – Martim sabia que, algures, a sua pobre mãe, que tinha sido toda a vida devotada ao seu pai como a mais fanática religiosa, estava a torcer-se na cama e a morder a língua. Quanto à sua irmã, ela nem tinha capacidade para criar bolinhas de sabão dignas do seu nome, e do lado do pai não havia tios, só tias. Contudo, nada disso parecia importar face à atitude de Céu, que se tornara muito mais calorosa depois de ouvir que ele também tinha uma vida difícil. – Sei como te sentes. É uma porcaria, não é?
- É. – Replicou Martim, sem o sentir, sem se aperceber do que dizia, felicitando-se por ter construído uma ponte de ligação entre os dois, ainda que se tratasse de uma ponte ilusória. – Uma porcaria. Não está calor aqui? – As frases de engate foleiras pareciam estar para ficar.
- Eu não sinto. – Foi a resposta. Segundos mais tarde, Céu deu mostras de ter por fim entendido que ele não se referia a calor no sentido que normalmente lhe era dado, e um sorriso maroto nasceu nos seus lábios. Ela não usava batom, como Martim pensara de início, ao reparar na quão vermelha era a sua boca. Aquela era a sua pele ao natural, sem químicos ou máscaras. Por algum motivo, compreendê-lo aumentou em graus o calor dentro do carro. – Ou, pensando melhor, talvez eu esteja a ver o que queres dizer. Está mesmo um sufoco.
Estava escuro. A lua minguante era só um cisco no céu, e de momento havia nuvens a tapá-la. A escuridão dentro do carro era maior ainda. Nada disso o impediu, porém, de apanhar uma boa imagem de pele tão clara e brilhante que mais parecia prateada, nem o seu coração de galopar com tanta intensidade que parecia estar para rebentar a qualquer momento. Céu abriu mais um botão da frente do vestido, revelando, diante dos seus olhos hipnotizados, mais uma porção de pele cor de alabastro. A temperatura explodiu.
- Oh, vá lá, não sejas tão apressadinho! – Gozou ela, batendo-lhe na mão que estendera sem querer, e desviando-o para o lado. Martim resmungou, incapaz de esconder o desapontamento, o que só a fez sorrir ainda mais. Não parecia tão irritada assim, ou mesmo zangada com o seu atrevimento. – Afinal, acabamos de nos conhecer, né? Vamos com calma.
Ele mal registou o que fora dito. A sua mente era um turbilhão, onde emoções, recordações, sensações e anseios se misturavam numa massa que era incapaz de reconhecer como parte dele. O que lhe estava a acontecer não era possível. Era uma experiência que escapava à realidade, que quebrava as barreiras daquilo que era aceitável ou racional, e o deixava como uma vítima despida, uma marioneta controlada por instinto. Martim sabia o que queria. Sabia que queria o que se escondia por detrás daquela roupa, por detrás daquele sorriso, e sabia que aquela noite, aquele momento, era talvez a sua única oportunidade de o ter. A discussão do Martim interior, racional, e do Martim exterior, animal, passara para um patamar mais verbal, onde um atirava insultos furiosos ao outro:
Vês, vês?! Que raio de rapariga é que ia dar uma resposta assim, hã? Sai já daí, pá, sabes lá quem ela é, às tantas ainda te saiu na rifa uma prostituta, vê lá se volta e meia ela não te pega uns cinco tipos diferentes de gonorreia…
E o Martim exterior respondia, as palavras entarameladas e difíceis de sair:
Não. Não é prostituta nenhuma, estás doido! Ela é a Céu.
Ao que o Martim interior dizia, já farto até a ponta dos cabelos:
Não, se calhar até não é, mas tu tens a Aninhas. A tua namorada, lembras-te dela? O que é que ela ia pensar disto tudo, poder explicar? – A Céu desapertara mais um botão do vestindo, expondo parte do soutien. Ele já mal respirava antes, e agora sentia-se asfixiar.
Aninhas…quem?! – E o Martim interior recolheu-se no seu canto, resignado.
- Eu sinto…sinto que te conheci a vida toda. – Arfou, roucamente. Céu deitou-lhe um olhar avaliador. Continuava na sua, totalmente relaxada, inconsciente ou desinteressada da angústia pela qual o estava a fazer passar. Depois, parecendo ter tomado uma decisão, esticou o braço e levou um dos seus dedos foi até ao queixo dele, tacteando naquilo que era, quase mas não ainda, uma carícia. – Acho que…acho que te amo!
- Amor é uma palavra tão grande. – Suspirou Céu, e adicionou, baixo, para que o outro não a pudesse ouvir: - E insignificante. – Não ganhou por ter baixado a voz. Martim nem se dera conta que ela falara. Os seus sentidos encontravam-se invadidos por vagas de vermelho, de desejo, de algo antigo e primordial. No fundo dele havia alguém que gritava, mas as palavras que pronunciava saíam abafadas debaixo de tudo o resto, e os pedidos desesperados de “Aninhas, pensa na Aninhas!” perderam-se no meio da confusão. Nada tinha importância. Nada era verdadeiro, nada existia além dele, daquele carro, e daquela rapariga linda, espantosa, chamada Céu. O mundo estava com eles, ali dentro.
- Beija-me. – Pediu. Ela sacudiu a cabeça e deitou-a de lado, encarando-o com um misto de divertimento e distanciação. Martim odiou a distanciação, e não sabia o que sentir sobre a parte do divertimento. Essa incógnita desapareceu quando ela cobriu a sua boca com a dela.
Foi um momento-relâmpago. Um raio cintilante da mais completa perfeição. E infelizmente para ele, que esperara por mais, que quisera mais, acabou antes de ter começado. Céu recolheu-se, regressando ao seu próprio banco, sem dar sinais de que acontecera algo fora do comum entre os dois. Um sorriso estranho bailava-lhe nos lábios, agora mais vermelhos do que nunca. Passou a língua sobre eles, humedecendo-os, antes de sussurrar:
-Tens protecção? – Martim deteve-se, parou para pensar a que ela se estaria a referir, e abanou a cabeça devagarinho. Céu fez um som de contrariedade. – Não importa, eu tenho no meu carro. Dá me um segundo para ir buscar…- Ele agarrou-lhe na mão para a impedir de sair.
- Não te dês ao trabalho, eu vou lá. Diz me só onde estão.
- Estava à espera que dissesses isso. – Céu fez aparecer uma chave, e mais uma vez Martim não parou para questionar de onde ela a retirara, se o vestido não tinha bolsos à vista. – Estão no porta-bagagem, toma a chave. – Passou-lha, e ele agarrou-a com dedos que tremelicavam de ansiedade e nervosismo. Uma recordação fantasma quebrou as barreiras da sua memória, assomando à superfície e deixando-o perturbado por um segundo. Era a imagem de uma rapariga com rosto oval, caracóis castanhos e sorriso amigável, e Martim sabia que a conhecia de algum lado. Talvez, numa vida passada, tivesse até sabido o seu nome, mas agora o de Céu era o único a preencher-lhe a alma. E não podia deixar Céu à espera.
- Volto num instante. – Prometeu, fechando a porta atrás de si. Tentou orientar-se no escuro, e seguiu o trajecto das luzes acesas até chegar ao carro dela. Aí, viu-se em maus lençóis para abrir a bagageira. Estava a ter dificuldade em controlar as mãos, e um tique nervoso parecia ter tomado conta do seu corpo. Não conseguia lembrar-se se já estivera daquela maneira com uma rapariga, mas a imagem da mesma miúda de caracóis continuava a aparecer-lhe à frente dos olhos, e na sua mente ela falava. O que ela dizia tinha sabor de reminiscência. O que ela dizia, dirigindo-se a alguém que presumivelmente era ele, era “Estás maluco, Martim Morais? Eu tenho princípios. Tenciono esperar pelo casamento.”. Concentrando-se bem nas suas palavras, Martim quase, quase se convencia de que não tardaria nada, o seu nome lhe voltaria à memória. Não tardaria. Ele tinha a certeza de que começava com “A”.
Finalmente, lá conseguiu acertar com a chave na fechadura. Olhando sobre o ombro para verificar de a Céu ainda o esperava no carro, levantou a tampa e espreitou para dentro. Instantes depois, desejou não o ter feito. Os seus olhos esbugalharam-se, o seu coração falhou, o seu estômago torceu-se como se acabassem de lhe ferrar um murro e a sua mente ficou em branco, com interferências cinzentas semelhantes às de um televisor mal sintonizado.
Martim não escutou Céu a chamá-lo. Estava ocupado demais a dobrar-se sobre si e a vomitar para cima dos sapatos tudo aquilo que comera ao jantar. O seu olhar recusava-se a abandonar a forma contorcida que ocupava a bagageira por inteiro. Quando entendeu como o corpo coubera lá, dobrou-se novamente e vomitou os restos do almoço. Alguém lhe cortara as pernas pela metade e colocara-as por cima do peito daquilo que, como se o horror da visão não chegasse por si só, entendeu ser um rapaz não muito mais velho do que ele.
- Então, porque é que estás a demorar tanto? – Há nem um minuto atrás, a voz de Céu era a voz de um anjo descido à terra, uma voz apropriada a canto gregoriano e hossanas. Ela mantinha essa voz, o que era um alívio. Martim não saberia como lidar consigo mesmo se ela tivesse passado de repente a falar em silvos de cobra ou linguagem de filme de terror. – Caíste no porta-bagagem ou quê? – A tampa da bagageira caiu no lugar com um clic. Tirar o corpo da sua vista não ajudou Martim a apagar a imagem dele da sua retina, mas ajudou-o a ser capaz de se mexer. Virou-se, imaginando como confrontá-la com a descoberta que fizera, e compreendeu que não tinha ideia do que dizer. “Céu, por acaso sabes que tens um morto no porta-bagagem?” não lhe soava como o modo ideal de principiar essa conversa.
- Eu…eu não encontrei os…- Gaguejou, pensando que devia estar a sonhar. O que é que ele tinha estado a fazer, afinal? Dirigia-se a casa da Aninhas – Aninhas! – quando vira o carro destruído, e aquela rapariga lhe pedira ajuda, e…Meu Deus, eles os dois quase tinham…
- Ah, estás a começar a lembrar-te, não estás? – Ela observava-o atentamente, e pelos vistos notara algo que lhe agradara na sua expressão. – A luzinha finalmente acendeu?
- Quem és tu? – Céu – se era realmente esse o nome dela – apontou para a porta do lugar do condutor, a que ele estivera a tentar abrir quando ela viera do nada e o interrompera.
- Vê por ti mesmo. – Martim obedeceu, preparando-se mentalmente para o que ia ver. Quando a porta se abriu, e o segundo corpo rolou para fora e aterrou no chão ao lado dele, a realidade atingiu-o com força: nada, nunca, o iria preparar para aquilo.
Era ela. Céu, com as botas de cano alto, o vestido pérola e o cabelo loiro até à cintura, a figura pela qual milhões de jovens por todo o mundo matariam, e metade da cara desfeita. Martim não era especialista em cadáveres, nem médico, nem sequer muito experiente com corpos, mas julgava-se capaz de reconhecer uma pessoa morta quando via uma. Ela estava.
- O nome dela é Mariana. – Ofereceu a voz da rapariga atrás dele. – E caso te estejas a perguntar, o tipo que acabas de ver é o namorado dela. Ela matou-o com…acho que foi um martelo para bater bifes, enquanto discutiam sobre onde passar férias. Estava a tentar livrar-se do corpo quando teve um…infeliz acidente. – Martim olhou de uma para outra. Mariana, Céu, Céu, Mariana, tão iguais, e com uma diferença tão grande. Uma estava viva, a outra não.
Supunha ele.
- És…a irmã gémea dela? – Mas ele nunca teria essa sorte. Nunca haveria uma explicação tão racional para um acontecimento daqueles. – O…seu fantasma? – Céu pestanejou.
- Claro que não, tontinho. Embora essa aí até esteja a acertar mais perto. Nunca te disseram para tomar cuidado à noite, pois podes encontrar-te com o diabo nos cruzamentos?
- Não. Eu não ligo a mitos urbanos. – Martim já recuava, mas infelizmente, o único lugar para onde podia recuar era de encontro ao carro. A cada passo que dava em recuo, ela dava mais um passo em avanço. Os seus olhos luziam mais à medida que encurtava a distância posta entre eles. – O que queres de mim? Não te fiz nada. Não sou ninguém que te interesse.
- Nisso tens razão. – Concordou ela. – Tu és só, para usar uma palavra simpática, a minha experiência social. E, toma nota, eu não acreditei nem por um segundo naquilo sobre a tua família. Mentir é tão feio, Martim Morais. E mentir para impressionar uma miúda, então…pff! – Martim sentia-se fraco. Ou, pensando melhor, fraco era menosprezar o estado em que ele se encontrava. Estava a uma unha de distância de desfalecer, mas ainda conseguiu reunir fôlego para insistir com quem quer que fosse aquela rapariga. Ou o que quer que ela fosse.
- Eu perguntei-te quem tu és. – Ou o quê.
Céu arregalou os olhos e fez beicinho.
- Mas eu disse-te quem eu sou. Que mais queres? Cornos, cauda e forquilha? Chamas a sair de debaixo dos meus pés? Já não uso dessas há anos. São tãoooo idade média! – Martim não mentira, para variar, quando lhe dissera que era crente. Ele até sabia umas coisinhas, orações, dez mandamentos e por aí em diante, nada de sobrenatural. Porém, de certeza que teria reparado se os textos religiosos mencionassem em algum lugar que o diabo era uma mulher. Céu estava a olhar para baixo, abotoando os botões do vestido por cima de um pendente brilhante cuja forma ele não soube distinguir. A sua cabeça ergueu-se como se algo lhe acabasse de ocorrer. – E…ohh, espera, tu julgas que esta é a minha aparência real? É isso?
Martim não falou, em parte porque perdera essa aptidão junto com a sua mobilidade.
- Não sejas palerma, meu querido. Eu posso parecer-me com aquilo que quiser. Esta foi só a forma mais à mão que me ocorreu quando te vi chegar. Fixe, né? – Ela deu uma pirueta, exibindo-se, e levantou-se num rodopio de vento, indo aterrar de pé no tejadilho do carro. – O perfeito isco para o adolescente mediano. E tu caíste como um patinho, devo dizer.
- Caí? – O Martim interior estava agora no comando, e a dar-lhe conselhos sensatos como “Ela está em cima do carro, demorará a descer. Enfia-te no teu, arranca e não pares!”. – No quê?
- No velho jogo, duh. Um menino tão dado à religião como tu deve saber qual é. E, Martim? Caso estejas com ideias de fugir de mim guiando, desiste. Não é só esse pormenorzinho de eu estar em todo o lado, é que realmente já não adianta. Já me deste o que quero! - Mesmo com a voz suave dela, aquilo conseguiu soar como algo sujo. Martim cerrou os punhos.
- O quê, um apalpão e umas beijocas? Eu sabia que eras fresca mal te pus a vista em cima. – E essa, pensaria ele mais tarde, era uma coisa inacreditavelmente estúpida para dizer a uma rapariga que, se não era o diabo, estava a fazer um excelente trabalho em personificar um.
Ela pôs a cabeça de lado e mordeu o lábio. Ainda não dava a impressão de estar irritada, o que para ser franco, Martim preferiria ao brilho calculista que lhe surgira nos olhos.
- Xi, lava essa língua. É assim que falas à tua namorada? E quanto ao que eu queria, beeemmm…eu precisava de um objecto de testes, e tu foste o melhor que podia encontrar. Não é nada de pessoal, percebes? Foi um jogo, e tu perdeste!
Ela era doida, decidiu ele. Louca. Maluca, completamente pirada!
- Que espécie de jogo? – A rapariga, ou a coisa em forma de rapariga, pôs os olhos em alvo. Martim nunca reparara na cor que tinham, ocupado como estivera a observar o resto. Automaticamente assumira que seriam azuis, visto que ela era loira, mas agora que via melhor, descobriu porque não soubera dizer como eram. Eles não tinham cor, a não ser que chamas contassem como coloração. Esse não era um detalhe a que ele devesse ter prestado atenção antes? Não deveria ter achado estranho, ao conhecer alguém, que essa pessoa tivesse bocados de carvão incandescente entalados nas órbitas? Como é que falhara em vê-lo?
O resto da cara dela continuava igual, inalterável e sorridente.
- Nada de muito complicado, a sério. É só que, sabes como é, as coisas ficam chatas lá em baixo e de vez em quando, para desanuviar, fazemos estes desafios aos mortais. O teu foi um dos mais velhos da história. Divino contra profano. Amor puro versus libido. E já agora, falhaste miseravelmente. – Lambeu o lábio inferior com uma língua esbranquiçada e bifurcada, um outro detalhe que escapara a Martim, e que esse lhe tivesse passado ao lado era imperdoável. Ele metera a sua na boca dela, por amor de Deus…Diabo…Céu?.. Uma língua bifurcada dificilmente passaria despercebida. – Tenho tanta pena. Parecias um rapaz tão amoroso que esperei mesmo, por um momento ou dois, que fosses ganhar. Mas o que é que eu posso fazer? É a vida!
- Ouve, Céu, ou qualquer que seja o teu nome, eu não sei que drogas andaste a tomar, mas…
Ela pestanejou com mais força, dando-lhe a ideia de que se aguentava para não rir.
- Drogas? Ganha juízo, Martim. Se eu quisesse ter um gostinho de Paraíso, ia até ao portão dourado e passava uma nota a S. Pedro para me deixar entrar pelos fundos. Eu estou abso-real-sincera-lutamente focada, e sei quem sou. Agora tu, meu menino, estás carente de uma revisão completa à alma. Cinco minutos a olhar para outra, e esqueces o nome da pessoa com quem estás comprometido? Que vergooonha!
Aquilo, resolveu Martim, não estava a acontecer. O Diabo não estava a falar com ele, usando a forma da mais linda rapariga que alguma vez vira, e a usar um tom de voz e linguagem que faziam parecer que se dirigia a um bebé que sujara a fralda em público. Era um sonho. Tinha de ser. Um sonho, ou ele sofrera um acidente, acertara com o carro na rotunda e estava nesse momento na ambulância, a delirar tudo aquilo. Era isso. Acidente.
- E o que é que vais fazer sobre isso? Mandar-me para o inferno? – Gozou, mas por debaixo das palavras de desafio, as suas pernas tremiam como feijões mexicanos dentro de uma batedeira. Estava atordoado com o que fizera. Traíra…quase traíra, afinal, aquele beijo fora curto demais para contar como traição completa…a sua namorada de longa data, o amor da sua vida, a futura mãe dos seus filhos não-nascidos. E fizera o sem pensar, sem culpas, sem sequer se preocupar com as consequências. Que tipo de pessoa era ele?
- Nem pensar. Nós os dois…- Ela aproximou-se um passo, ele recuou um. As suas costas bateram na janela do carro. O sangue correu-lhe frio quando o seu rosto inclinado ficou muito perto do dele, perto demais, demasiado perto. Há minutos teria vendido a alma para a ter a olhá-lo assim, para que tornassem a ficar àquela proximidade um do outro. Agora…agora ele venderia a alma por um par de pernas de corredor e dez minutos de avanço sobre a criatura que lhe soprava na cara, alheia ao temor que inspirava nele. -…oficialmente acabamos. Tchauzinho e boa noite para ti!
De repente, Martim já sentia as pernas outra vez. O que não ajudou à sua confusão. Que ela se estivesse a afastar, dando saltinhos como se pisasse brasas, e se era quem dizia essa comparação vinha mesmo a propósito, não fez muito para que ele entendesse o que se passava desta vez. Era possível o Diabo ter pirado do juízo?
- Estás a deixar-me ir embora? – Perguntou, a medo. Ela mexeu a cabeça para cima e para baixo, como um boneco sempre-em-pé a quem foi dado um toque, e afastou-se mais ainda.
- Eu já disse, mas ao que parece vou ter de repetir: já me deste o que quero. Vai à tua vida, pelo pouco que me importa. Faz as pazes com a querida Aninhas, isto se lhe chegares sequer a contar que isto tudo aconteceu. Esquece-me. Esquece esta noite.
Martim olhou para ela.
- Tudo bem. – Aí ele olhou melhor para ela, e reparou que o seu sorriso desaparecera. Embora cada um dos seus instintos sãos lhe estivesse a exigir que fizesse o que lhe tinham mandado e se pusesse a andar, aquele sorriso ausente fez com que hesitasse. Havia uma última dúvida que absolutamente tinha de tirar. – A propósito…o que é que tu querias de mim? O que é que eu perdi com tudo isto? – Porque o Diabo, entendeu subitamente, não se daria àquele trabalho só para o fazer cometer o quase pecado da traição. O Diabo, por tudo quanto sobre ele ouvira, estaria à coca para caçar um prémio grande, e ele daria a sua alma para saber qual.
Alma. Claro.
Um sorriso com o feitio de uma meia-lua assomou nos lábios da rapariga, como se ela lhe tivesse lido o pensamento. Ou, mais plausível tendo em conta o quanto a sentia petrificada, descoberto qual este tinha sido através da expressão na sua cara. Martim soltou o ar que de tanto tempo preso nos seus pulmões, já se transformara em ar viciado, e encarou-a com a letargia de quem já se sabe condenado e em posição de pouco ou nada poder fazer a respeito.
- Esquece. – Disse, enfiando as mãos nos bolsos e desviando a cabeça. – Penso que já sei.
- E eu penso que devias ir andando. Já deves estar atrasado para uma festa, hã?
- Sim. – A única resposta aceitável que se sentia em condições de dar. Podia felicitar-se a si próprio por a conseguir fazer sair. – Tenho. – Talvez estivesse a imaginar coisas, mas ficara mais frio de repente? Não exteriormente, pois essa temperatura seguia tal e qual como antes, mas dentro do seu peito? Como a sensação de beber uma garrafa de água gelada, seguida de um saco inteiro de rebuçados de mentol, este era um fogo frio que lhe descia pela garganta, se entranhava no seu estômago e o esmagava, sem fazer doer mas deixando-o em pânico por saber nada poder fazer para o parar. Era assim que era, ter a alma arrancada? Martim não se sentia tão diferente quanto isso. Se lhe tivessem perguntado como acreditava que seria, responderia que imaginava tornar-se uma marioneta sem vontade própria, ou um ser impiedoso e sem remorso. Não se imaginava a permanecer igual ao que era, excepto pela impressão chata de que as suas entranhas haviam passado uma tarde inteira num frigorífico. Só não sabia se devia rir de alívio ou suspeitar de um truque.
- Oh, e Martinzinho? – Chamou ela, mal ele deu o seu primeiro passo até o carro. – Só para que saibas…recolher almas também é tãoooo Idade Média. Já ninguém o faz, sabes? Agora o negócio é mais vocacionado para a recolha de…
Martim já não a ouviu. Nos anos por vir, ele iria deitar-se na cama, com uma almofada a tapar a cabeça, e pensaria naquela palavra, na palavra que nessa noite se perdera no meio da sua ansiedade louca por chegar ao carro, abrir a porta e atirar-se lá para dentro. Se tivesse sabido qual ela era, talvez tivesse olhado para trás e feito o obséquio de cair de joelhos à frente dela e implorar por misericórdia. Ele nunca viria a saber qual tinha sido, não nesta vida, mas teria sempre uma desconfiança, um pressentimento que o mordia no fundo da sua mente, de que sabia o que aquela rapariga lhe levara. A confirmação, essa é que não viria nunca.
O motor arrancou, e o carro pôs-se em andamento, lançando-se à estrada com um ronco de bicho furioso. Martim já não sentia o frio. Se algo, o que o incomodava era o suor que lhe caía em rios pela base do pescoço, ensopando-lhe as costas da camisa. Estava atrasado, atrasadíssimo. A Aninhas ia matá-lo. Acabara de fazer o mais aproximado que havia com um pacto com o diabo, e era provável que tivesse perdido a alma no processo. Se existia modo de aquela noite lhe piorar, agradecia que lhe explicassem qual era, pois não via nenhum.
Embora tivesse decidido não olhar para trás, ao contornar a rotunda foi-lhe impossível não apanhar um relance da estátua da personagem histórica anónima. Não havia automóvel nenhum espatifado nela, nem sinais de ter ali ocorrido um acidente, mas continuava a haver uma rapariga sentada debaixo da estátua, sobre o bloco de pedra. Os seus dedos brincavam com uma corrente que tinha presa à volta do pescoço, e levantavam um pendente preso a ela. O pendente tinha a forma de um coração.
Martim fez uma careta e deu uma pancada no rádio, ligando-o numa estação ao acaso. Também ao acaso, a sua mão foi direita ao porta-luvas e retirou do seu interior a caixinha de jóias. Num rasgo de intuição, soube o que encontraria lá dentro mesmo antes de levantar a tampa, e comprovou-o logo. Estava vazia. O “Coiso” desaparecera sem deixar rasto.
De algum jeito, ele iria conseguir justificar tudo aquilo à Aninhas. Nem que inventando uma explicação; que houvera um engarrafamento, que o seu carro se despistara – nem era mentira, essa -, que perdera o seu presente de aniversário, que…que adormecera em frente da TV, porque não? Todas elas eram explicações razoáveis e racionais, que não exigiriam montanhas de fé para serem acreditadas. Ele nunca lhe mentira antes, pelo que ela não tinha razão de desconfiar. Tudo menos contar-lhe que deixara o Diabo entrar no seu carro, e que este lhe roubara a oferta que planeava dar-lhe. Depois de o ter beijado. Oh, e que em algum ponto da acção, houvera um cadáver enfiado numa bagageira e uma rapariga com a cara esborrachada. Esses eram detalhes que nunca, em situação alguma, iria incluir.
Também não lhe diria que o Diabo tinha o mais belo rosto daquele lado do planeta, um rosto que raparigas matariam para ter e rapazes para poder tocar. Tal como não ia nem mencionar que agora que o medo desaparecera, que o cruzamento, rotunda e estátua tinham ficado para trás, a imagem dos olhos em chamas era uma que queimara um lugar para si na sua mente. Por mais anos que vivesse, por mais raparigas para quem olhasse, seria deles que se lembraria. Ainda que não se viesse a recordar de tudo o mais, já que mal estacionou o carro junto da ladeira que conduzia à casa da Aninhas, já a sua memória o convencera de que se esquecera por completo dos anos da sua namorada, e que por isso é que chegara com uma hora de atraso e não lhe comprara prenda. Esquece-me. Esquece esta noite!
Ele assim o fez.
Aninhas não acabou o namoro à conta do atraso ou ausência de presente, porque se houvera uma jovem com cara de anjo chamada…como é que era, mesmo? Qualquer coisa começada por “C”.., ela tinha uma compreensão de santa. Não se zangara, limitando-se a pespegar-lhe um raspanete e a anunciar que não teria miminhos nessa noite, para ver se aprendia a não se distrair tanto. Martim passara a festa inteira a olhar fixamente para o fundo do seu copo, só se juntando a ela para cantar os parabéns e partir o bolo. Essa foi realmente a última ocasião em que o nome e a pessoa de Aninhas significaram algo para ele.
Dois meses depois ela terminava a relação, em lágrimas, com a convicção espantosamente correcta de que era a única que ainda investia energia e sentimento no namoro dos dois. Martim, que nesses dois meses podia contar pelos dedos de uma mão as vezes que lhe prestara atenção, escutara a terrível sentença como um condenado à forca a quem cortam a corda no derradeiro instante. Partiram por caminhos separados, e dali em diante ele viria a ganhar o hábito de parar o carro nos cruzamentos e sentar na beira da estrada, a ver passar pessoas e viaturas. Levantaria a cabeça se a ocupante de um dos automóveis era rapariga e loira. Se o carro em que esta ia parasse, ele olhá-la ia com toda a concentração, buscando no seu rosto por sinais de nem sabia bem o quê. Contudo, nunca os encontraria. O carro seguiria em frente e Martim baixaria a cabeça, desanimado sem motivo.
Foram os primeiros tempos do resto da sua vida. Dali em diante, ele descarrilou por completo, entrando numa espiral descendente de bebida e raparigas, ambas incapazes de preencher o vazio que lhe corroía o lugar onde antes, numa época que já era uma lembrança distante, estivera um coração batente. Passou a atirar pedras a pássaros e a vandalizar estátuas em jardins públicos, a quebrar limites de velocidade e assustar transeuntes simplesmente porque podia, e a cada má acção, a cada pontapé num gato inocente, mais se parecia saber recordar de qual era o seu objectivo, e mais fresca de tornava a memória daquela noite. A memória de uma rapariga chamada Céu, e da palavra que não ouvira.
Martim nunca se chegou a formar. Desistiu da escola um mês antes de findo o ano lectivo, abandonou os planos para a universidade e arranjou emprego no bar mais rasca que se dispôs a aceitá-lo. Nunca casou, também, nem teve um filho que fosse. Continuou a viver com os pais, assistindo ao crescimento e desenvolvimento da sua irmãzinha numa jovem mulher decente e segura de si, e aos trinta foi expulso de casa quando essa mesma jovem mulher decente e segura de si, ao revirar a sua gaveta das meias em busca de um par limpo para usar, deu com um saquinho de pó branco. O seu carro, que entretanto comprara com fundos provenientes da venda desse mesmo pó, tornou-se o seu lar permanente.
Nunca voltou a ver Aninhas. Houve quem o informasse, apesar de ele não o ter procurado saber, que ela entretanto acabara o seu curso de medicina e tinha ido exercer no estrangeiro. Essas mesmas pessoas tiveram o cuidado de lhe transmitir, com sorrisos de falsa simpatia nos lábios, que estava noiva de um cirurgião. A notícia não o movera nem comovera. Em algum ponto da sua vida, desconfiava, alguém lhe roubara o coração e deixara um vácuo no sítio que este deveria ocupar, um vácuo apenas preenchido pela imagem de alguém com quem só a morte o reuniria. Ironicamente, acabou por fazê-lo de facto.
Dias antes de completar quarenta anos, Martim envolveu-se numa luta que acabou mal para ele. Um corte de faca no lugar errado, e terminou estendido no pavimento, a sangrar de feridas que mesmo com intervenção médica imediata ainda seriam fatais, e que sem ela, como era o caso, não lhe davam muito tempo para escrever o epitáfio.
Nos seus últimos momentos, viu um rosto pairar acima de si, um rosto com olhos de fogo que se focava e desfocava diante dele. Na sua mente, o filme da sua vida correu em marcha rápida, relatando-lhe quem fora e o que fizera, e deixando-o saber que dali, não existia escapatória: não haveria céu para ele, de maneira alguma. Ia directamente para o Inferno.
Martim Morais morreu com um sorriso nos lábios. O seu céu, no inferno o encontraria.

FINIS


Bem, o que é que acharam?
Moggo
Moggo
Cheguei!

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