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Mensagem  Moggo Qui Out 14, 2010 4:28 pm

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Sumário: Emma Hanover é uma jovem de dezoito anos que está a morrer de uma peste para a qual a medicina ainda não descobriu remédio. Contudo, naquela que devia ter sido a sua última noite, um misterioso distúrbio temporal ocorre, salvando-lhe a vida…mas não indefinidamente. Emma tem agora doze dias para impedir uma catástrofe, antes que o seu período de trégua com a sua própria mortalidade se esgote. Conseguirá?

PRÓLOGO

……………Primeiro vieram as pústulas. Gordas, vermelhas e infectas, elas despontaram-lhe pelo corpo, primeiro na zona do peito, e nos dias seguintes por cada centímetro de pele até ali ainda não vítima da doença. Quem entrava no quarto onde estava não avançava para lá dos três metros em redor da cama, tal era o cheiro que empestava a atmosfera que a rodeava. Esses foram os primeiros dias. Do quarto em diante já ninguém na casa se atrevia a subir às escadas para lhe levar comida, confiantes na sua certeza de que a peste a levaria antes do final da semana, e que após disso só lhes restaria a tarefa de fumigar o quarto onde a sua pequena vida se findaria.
……………À noite, aqueles que haviam arrastado colchões para o rés-do-chão deitavam-se a olhar para o tecto, tentando em vão ignorar os passos da morte que caminhava acima deles, com pés que mal tocavam o soalho ao aproximar-se da cama. Desenganem-se aqueles que acreditam que ela vem silenciosa, intangível e inodora, sem ser sentida ou pressentida. Ela vem, mas quando o faz todos dão por isso, e naquela noite, exactamente duas semanas após o aparecimento da primeira mancha em pele branca, os seus passos soavam mais altos que do que nunca. Na cama de lençóis já amarelados e emporcalhados com nódoas diversas, Emma Hanover dormia, embalada em sonhos rosados e felicidade pertencente a outros dias, sem ouvir ou sentir fosse o que fosse. Pois quando a morte chega, os únicos a não dar por isso são aqueles que ela vem buscar.
…………...Num lugar e tempo, um lugar e tempo mais negro e triste, a morte debruçou-se sobre a cama e levou-a nessa mesma noite, retirando-a do seu corpo a viver em decomposição e conduzindo-a pelo braço até um sítio melhor. Noutro lugar, algures, o ponteiro de um gigantesco relógio parou um segundo antes da meia-noite, e o mundo alterou-se com ele.
.................Nesse tempo e nesse lugar, Emma Hanover viveu.


Para prólogo, penso que já chega. Como esta é a primeira história original que escrevo com intenção de a tornar num texto mais ou menos desenvolvido com múltiplos capítulos, e como esta é a primeira vez que estou a ter de criar um set inteiro de personagens de raiz, quaisquer opiniões/sugestões/ajudas são muito bem-vindas. Ainda não sei muito bem quando irei actualizar isto. Tenho já imensos projectos de escrita que estão a ser actualizados rotativamente, mas prometo tirar um tempo para colocar o primeiro capítulo mal possa.
Bem…comentários, please?..


Última edição por Moggo em Seg Out 18, 2010 11:17 am, editado 2 vez(es)
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Mensagem  TokioFan Sex Out 15, 2010 6:05 pm

Esta muito giro! Fiquei curiosa pelo que sairá dai!
Mais!
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Doze Badaladas Empty Capítulo I - Tempo Em Espera

Mensagem  Moggo Ter Out 19, 2010 7:46 pm

'Kay, aqui vai o primeiro capítulo. Se o acharem um pouco comprido...bem, aí não posso fazer nada, pois vão ser todos mais ou menos do mesmo tamanho. Apreciem. (Ou não.)
E, para TokioFan, obrigada pelo interesse
.


Capítulo I – Tempo Em Espera

…………….Na noite que de outra forma teria acabado com esta história antes de ela começar, uma tempestade explodiu no céu por cima da cidade de Cráduma. Cráduma não se encontra mencionada ou registada em nenhum mapa ou livro de história, em parte por ser uma cidade demasiado minúscula para merecer consideração, e em parte porque Cráduma, efectivamente, nunca existiu excepto na realidade alternativa que tomou forma a partir do instante em que uma jovem chamada Emma não libertou o seu último suspiro. Não obstante, Cráduma foi onde se deu o princípio de tudo. Na contagem dos anos feita pelos seus habitantes, a cidade fundou-se meia dúzia de décadas após a chegada dos primeiros colonos do Mundo-De-Então, a partir de uma aldeia que se expandiu e cresceu até ganhar o seu não tão impressionante tamanho actual. Era uma cidade costeira, mas a sua distância e isolamento do mundo civilizado tornavam raros os barcos com eventual interesse em atracar no seu porto, e a alta falésia que a rodeava por todos os lados dissuadia as carruagens de a visitar.
……………O último barco que chegara a Cráduma, vindo das Terras Além-Mar, trouxera com ele marinheiros cabeludos e sem higiene, bugigangas e mercadoria para as lojas, cartas de parentes que viviam longe e, sem que ninguém o soubesse até ser tarde demais, a peste que embora tivesse ganho outro nome nas Terras Além-Mar, viria em Cráduma a ganhar o nome do barco que a levara até aos seus habitantes: Peste Carlada, a dama negra que viera à até então pacata terra para reclamar a vida e saúde de quem lá vivia, espalhando-se em menos de nada por entre a população como um enxame de gafanhotos a atacar uma colheita.
……………Emma Hanover vivia no número nove da Rua do Porto com a sua família de seis elementos, pai, mãe, avô, tio e dois irmãos mais novos. O dia em que caiu de cama, a tossir com os pulmões cheios do muco que era o primeiro indício de que o flagelo mortal cravara nela as suas garras, foi o dia do seu décimo oitavo aniversário. A peste viera dentro do bolo.
……………Duas semanas depois, quando a doença já a reduzira a um estado próximo de cadáver vivo, relâmpagos riscaram um infinito de cor violeta e trovões estouraram sobre os telhados.
……………E para Emma, esse foi o momento em que todos os relógios do mundo pararam.

************

- Qual deles?
- Aquele. – Na escuridão, o dedinho minúsculo que apontou para uma das figuras que ressonavam, deitadas em colchões e imunes à barulheira da chuva que atacava os vidros, era quase invisível. Quase. – O da direita, o mais novo. É tradição que seja o mais novo.
- Porcas e retortas para a tradição! – Resmungou aquele que falara primeiro, numa voz que tinha tudo para ser classificada como…lenhosa. – O fedelho chora quando sangra do nariz!
……………A segunda pessoa, que aliás era uma ela e nem era bem uma pessoa, considerou isso.
- Talvez. Mas todos os adultos são velhos demais, e o rapaz do meio é um rufia. Eu não gosto de rufias! – As palavras soaram exactamente como um lápis afiado soaria se lhe fosse ensinada linguagem. De madeira, mas agudas e com grafite misturada. O dono da primeira voz fungou.
- Nesse caso, porque estás comigo? – A dona da segunda voz deu-lhe uma cotovelada brincalhona, que quase o fez cair de onde estava. Recompondo-se na medida do possível, equilibrou-se em pés pouco dados a mobilidade e retomou o assunto onde este se desviara de curso. – E a mais velha está a morrer lá em cima. Queres que seja ela, não?
- Ela tem potencial. – Murmurou da dona da segunda voz. – É realmente uma pena que não vá passar de hoje. – O dono da primeira voz reconheceu o tom oculto na voz da outra. O tom de quem já tomara uma decisão, e a levaria adiante independentemente do que ele, a razão e o senso comum lhe pudessem dizer. – Mesmo lamentável.
- Eu sei no que estás a pensar, mulher, e que me enfiem um ponteiro grande pelo buraco acima se permitir que faças isso. É contra as regras, o bom senso e a…- Um relâmpago oportuno escolheu esse instante para cair bem perto da casa, enchendo os seus vidros de luz branca e iluminando, por um momento precioso e fugaz, o mostrador do relógio antigo pendurado na parede. O dono da primeira voz observou os ponteiros, ambos os ponteiros, imobilizados sobre um grande número doze. – Tu já fizeste?!
- Há coisa de um minuto atrás. – Confirmou a dona da segunda voz, com um pouco mais de presunção do que era realmente necessário. – Até estranhei não teres dado pela ausência do “tic, tac”. – Vendo o ar agoniado do companheiro, colocou-lhe uma mão no ombro. – Descansa, querido. Tudo vai correr bem. E se não correr…afinal, é só uma dúzia de dias que perdemos.
- Doze dias podem significar uma vida. – Ela riu-se. Soou como um risco feito em papel.
- Exactamente.

************

……………Emma abriu os olhos e sentou-se direita na cama. Acabava de despertar de um sonho bom, o primeiro não-pesadelo que tinha em dias, sem consciência do quão perto esse sonho estivera de ser o seu último. Sonhara com Mikel Byrson, por nenhuma razão em concreto além da de que ele era o seu colega de mesa em todas as aulas de biocriacionismo, e as aulas de biocriacionismo eram por acaso uma das melhores partes da sua vida. Também sonhara com a sua mãe e com tartes de amora, e com vassouras e feijões gigantes. Ia a meio do processo de colocar os sonhos por ordem decrescente de satisfação que lhe haviam provocado, quando algo registou na sua mente.
................Era capaz de sentir o seu próprio braço. E senti-lo como sentiria um membro real, saudável, com ossos que não tinham a fragilidade de cascas de ovo e pele que não se diria ir desfazer-se ao toque. Pela primeira vez em catorze dias, ela era una com o corpo e não tinha ganas de se matar à conta disso. Existir e respirar já não era um tormento. Onde a sua carne antes se abria em chaga, agora os seus dedos passavam para a descobrir lisa e intacta.
…………….Emma demorou pouco a chegar à conclusão de que ainda sonhava. Era demasiado racional para se permitir a acreditar no contrário. E como aquilo era um sonho, e como aparentemente nesse sonho a sua doença se encontrava curada, concluiu ainda que não se tratava de um pesadelo, e que como tal tinha obrigação de tirar o máximo de proveito dele. Colocando um dos pés fora da cama e estremecendo ao sentir o toque das tábuas frias, a que o outro não tardou a seguir-se, deu um passo experimental em direcção à porta. O peso do corpo não fez os seus joelhos ceder, e o chão não se abriu debaixo dela. Emma decidiu que essa era uma boa coisa. Respirar não fazia doer. Essa era uma boa coisa também.
...............Se lhe fosse pedido para se descrever a si própria a nível de personalidade, Emma franziria uma sobrancelha, levantaria a outra e responderia como “Mmmm…sei lá?..”. Se lhe pedissem para se descrever a si própria a nível de físico, diria “Para quê? Não me estás a ver neste momento?”. Se lhe pedissem para descrever o conjunto de si própria, a réplica mais provável seria uma palavra só: “Emma.”. Emma Hanover gostava de desperdiçar saliva quase tanto como gostava de falar da sua pessoa, não que a sua pessoa fosse alguém de quem valia a pena dizer muito. Emma acreditava no que via, falava pouco, estudava o que podia e trabalhava quando lhe mandavam. Gostava de crianças, se as idades destas se situassem abaixo dos dez anos, e sentia dificuldade em tolerar quem quer que fosse acima dos dezasseis e entre os trinta. As suas feições e atitude assemelhavam-se em tudo às de um esquilo, dando a impressão de que o mais mínimo movimento se agarraria à sua bolota por temer que estivesse a chegar alguém que lha tentaria roubar. O seu constante nervosismo não chegava para lhe valer o título de alienada, mas dificultava-lhe a vida. Estar sempre de sobreaviso em relação ao mundo era algo que definitivamente complicava as relações de uma jovem.
……………Emma deu mais um passo, e então mais dois. Dentro de breve já se encontrava fora do quarto, e feliz com isso. O fedor da peste, a sujidade e a morte omnipresente naquelas paredes faziam com que permanecer encerrada dentro delas não fosse uma ideia que lhe agradasse por aí além. Assumindo que sonhava, era possível que o que a esperava do outro lado da porta fosse inteiramente diferente do corredor a que se habituara, mas dispunha-se a correr o risco. Ficou até ligeiramente desapontada quando ao sair, se deparou com precisamente aquilo que esperava ver. Se aquele pretendia ser um sonho, porque não tratara este de lhe mudar o ambiente? Julgaria o seu subconsciente que um corredor desolado era aquilo de que queria que os seus últimos bons momentos fossem feitos?
……………Emma desceu as escadas e evitou o quarto dos pais. Evitou igualmente o quarto do avô, que sabia por experiência estar tão repleto de fatalidade latente como o seu, e praticamente fugiu da porta do tio West. O que mais a arrepiou foi que não se ouvisse um som que fosse naquele andar, descontando o rugido da tempestade que ia de encontro aos vidros como se exigisse entrada. Descobriu a razão mal pôs pé no rés-do-chão. Os membros ainda saudáveis da sua família dormiam ali, em colchões alinhados uns juntos dos outros. Todos eles estavam impedidos de sair dali, tendo de sobreviver com as rações que os vizinhos lhes vinham deixar à porta. Desde que o Carlada atracara no porto e a peste se disseminara, essa tornara-se a lei: os habitantes da casa de um doente não a podiam abandonar, sob pena de esta ser incendiada caso o tentassem. Tinham-no feito para impedir que a doença se propagasse mais depressa do que já fazia. Se até quarenta dias após a morte do doente mais ninguém do agregado familiar mostrasse sinais de estar infectado, deixavam-nos em paz. Antes não.
……………Emma examinou cada um deles à vez, maravilhando-se com a perfeição com que o seu sonho estava a reproduzir as suas feições. O ressonar dos seus irmãos era idêntico ao original. O avô parecia rabugento até ao dormir. O tio West tinha a boca entreaberta e uma mão em cima do peito. Os seus pais encontravam-se deitados no mesmo colchão, com as cabeças juntas. Até Nouche, a gata da família, imitava o seu comportamento normal. Não dormia, mas ocupava uma das cadeiras mais confortáveis e ronronava de satisfação. Se Nouche fosse um gato normal, estaria a perseguir ratos pelos telhados. Infelizmente, esta era tão velhota que mal se mexia, e o felino menos noctívago de que havia memória. Emma foi até ela e pegou-lhe ao colo. A gata reagiu inesperadamente, explodindo numa sucessão de “Fssst! Fssst!” e procurando, sem sucesso, escavacar-lhe o braço com as garras quando lhe tentou fazer uma festa. Emma largou-a por reflexo, após o que o bicho fugiu e se foi refugiar debaixo de uma poltrona, onde ficou a bufar e a resmungar em língua de gato. Aquela reacção da parte de um animal de estimação seu, que criara desde o dia em que lha tinham trazido sob forma de uma bola de pêlo não muito maior que o seu punho, ofendeu-a como nada mais poderia ter feito.
……………Emma agachou-se e enfiou uma mão debaixo da poltrona.
- Nouche! Aqui, menina! Psst, anda cá! Psst! – Chamou. – Bichinha, bichinha! Psssttt!!!
- PSSSTTT!!! – Chamou outra pessoa, numa voz que soava como um tronco a ser serrado. Emma, que nessa altura estava a retirar a mão a toda a pressa para não a ter desfeita por um par de garras bem aguçadas, falhou de início em perceber que aquele “Psst!” não tinha saído da sua boca. Só deu por isso quando a voz insistiu. – Psst! Moça! Aqui em cima!
...............Como já tinha anteriormente estipulado que sonhava, Emma não se interrogou acerca da proveniência da voz, que lhe era aliás completamente desconhecida, e não viu mal em obedecer e esticar o pescoço para ver o que havia ali em cima afinal de contas. Lembrar-se de que nada daquilo era real também a ajudou a não deixar cair o queixo quando entendeu de onde viera a voz que persistia em chamá-la cada vez mais alto. Esta vinha do relógio.
……………O relógio de cuco pendurado na parede era uma relíquia, e estava na família Hanover há mais de cinquenta anos. Tinha o formato de uma casa de bonecas muito detalhada, com o telhado dourado e os lados pintados de vermelho, e um badalo igualmente dourado que andava de um lado para o outro no seu interior. Em criança, um dos passatempos preferidos de Emma tinha sido o de olhar para a pequenina porta que havia na parte da frente e aguardar o instante da mudança de hora, em que esta se abriria e sairia o casal de bonecos que segundo o avô Hanover habitava o relógio. Eles saíam sempre, davam uma volta pelo percurso estipulado, tocavam uma musiquinha sem ritmo nenhum, e voltavam para dentro pela mesma abertura por onde tinham saído. Emma tinha sido uma criança sem muito que fazer.
- Psssttt! – Tornou a voz. Emma deu um passo hesitante para a parede. O relógio já não era a peça decorativa que a recordava de uma infância feliz, graças às circunstâncias do seu reaparecimento. Ficara em casa do avô quando o resto da família decidira emigrar para as Terras Além-Mar. “Terras Além-Mar” era um rótulo que se referia a diferentes locais, dependendo do lado do mar em que se estava. Para os habitantes do Grande Continente, referia-se ao Pequeno Continente. Para os do Pequeno, referia-se ao Grande. Naquela situação em particular, a família de Emma emigrara do Grande Continente para o Pequeno Continente, onde agora viviam. O avô Hanover recusara-se a acompanhá-los, recorrendo ao argumento de que “Nesta terra nasci, nesta terra vivi e nesta terra irão fazer fila para cuspir na minha campa!”. Só por frases como essa era possível ver-se o tipo de personalidade do velhote.
……………O relógio apenas reaparecera na vida da família Hanover há quatro meses. Viera no mesmo barco que trouxera a peste, com uma carta do ex-dono a acompanhá-lo. A carta informava que o relógio era uma herança prematura, uma vez que o avô não acreditava ter muito tempo de vida a restar-lhe. Visto que ao contrário de mais de metade do Grande Continente, a iminente morte do avô Hanover se devia a razões estritamente naturais, tal como o facto de este já ter para cima de noventa anos, sabia-se que o relógio não carregara a doença. Contudo, não era por isso que Emma o encarava com menos desconfiança.
…………….E encarava-o com mais desconfiança ainda agora que este dera em falar com ela.
- É comigo? – Perguntou, pensando que como sonhava não era nem estúpido estar a falar com um objecto inanimado. Um som fez-se ouvir, sobrepondo-se ao barulho da tempestade. Era uma badalada, e soara zangada.
- Com quem é que havia de ser? Suba a uma cadeira, moça, precisámos de falar consigo cara a cara, senão não dá! – Emma pensou que aquela devia ser a voz mais estranha que já escutara. Nem sequer soava como uma voz de pessoa. Tinha um tom seco, como toros de lenha a crepitar numa lareira acesa, e a urgência que continha era impossível de ignorar. – Vamos lá, vamos lá a despachar, não temos a noite toda para isto! – Emma apressou-se a puxar da poltrona e a subir para cima dela, fazendo pouco caso dos protestos assanhados de Noche. As tábuas do chão estalaram, e quem quer que estivesse a falar de dentro do relógio deu um assobio furioso. – Eh! Silêncio, quer acordar a casa toda? – Uma segunda voz juntou-se à dele, sussurrando, e esta soava igualmente estranha aos ouvidos de Emma. – É claro que não me vou desculpar, Mabel! A moça é que devia tomar mais cuidado!
- O meu nome é Emma. – Disse Emma, que estava de pé em cima da poltrona e a esfregar os olhos com tanta força que lhe ficaram a doer. Escusado seria dizer que esta não acreditava no que via. A porta na frente do relógio encontrava-se aberta, e era de lá de dentro que ambas as vozes vinham. – Quem são vocês?
- Theo. – Disse o tal que falara primeiro. Emma tentou encostar o olho à abertura para ver se havia algum dispositivo lá dentro que estivesse a emitir as vozes. Uma picada, como a de um dedo minúsculo a ser-lhe enfiado na retina, dissuadiu-a logo da tentativa. – E Mabel. Prazer.
- Porque é que estão dentro de um relógio?
- Não sei, moça! Porque é que tu estás fora de um relógio? – Emma pensou na resposta.
- Porque sou uma pessoa, e pessoas não vivem em relógios. – Acabou por dizer.
- Ámen a isso, minha filha. – Concordou a segunda voz, desta vez mais alto. – Nem nós devíamos ter de viver, já que o mencionas. É desumano. E muito apertado.
- Vocês são o casal do relógio. – Emma não estava a atirar opções à sorte. O sonho era seu. Fazia sentido se o fossem, mais sentido do que qualquer outra hipótese. – Acertei?
- Erm…- O auto-intitulado Theo deu uma tossidela. - …teorectráticamente, nunca casámos.
- Ah. – Foi a única coisa que Emma se sentiu capaz de dizer. – E…estão a falar comigo porque?..
……………Aí ela reparou em algo que lhe passara despercebido até ali. O relógio estava parado, os ponteiros imóveis e o badalo sem vida. Devia ter dado antes pela ausência de ruído de segundos a passar, mas distraíra-se demasiado. Tornou a aproximar a cara da abertura. Desta vez, o som que de lá saiu foi um bufar que não ficou aquém dos de Nouche.
- É má educação espreitar para dentro das casas dos outros, moça! – Criticou Theo. – Estende a mão, nós saímos por nós mesmos. – Sem saber no que se metia, mas curiosa por descobrir o que as vozes pretendiam com o pedido, Emma assim fez. – Não, não. Aproxima-a da porta!
……………Mais uma vez, Emma obedeceu. Houve um simulacro de movimento na abertura, e um segundo que ninguém ouviu passar depois, uma figura com uns poucos centímetros de altura pôs uma bota preta do lado de fora e trepou para a sua palma. Emma piscou os olhos. A figurinha pôs-se de pé, fingiu sacudir pó da casaca pintada e examinou o local onde pousara, parando para pisar as linhas que lhe percorriam a mão. Aí soltou uma fungadela.
- Linha da vida curtinha. – Observou, para depois se virar. – Mabel, está tudo bem. Podes vir!
……………Emma estremeceu quando mais outra figura igualmente mínima subiu auxiliada pela primeira, de quem recebeu um olhar de censura. A segunda figurinha era a representação de uma mulher loira, de vestido e avental. A primeira era a de um homem de chapéu e casaco vermelho. Ambas elas protestaram quando a sua palma tremeu debaixo deles, e a rapariga desculpou-se à pressa. A palavra “Sonho!” repetia-se na sua mente como a música de um disco de vinil riscado. Convencer-se, o que aliás não dava muito trabalho por já se encontrar convencida, de que nada daquilo era a sério, parecia-lhe a maneira mais eficaz de evitar dar em louca. A sua mente estava a somar os factos. Quando essa conta metia bonecos que, pelas leis de tudo quanto se sabia, deviam ser inanimados, o seu resultado só podia ser a certeza de que estava a dormir. A única dúvida era a de se queria acordar ou não.
- Estás a suar por tudo quanto é sítio, querida. – Disse Mabel, com cara reprovadora. – Podes tentar acalmar-te? É que eu já estou com sapatos que fazem escorregar, e se resolves alagar a tua palma…
- Desculpe. – Emma usou a outra mão para se beliscar disfarçadamente, e ficou desapontada quando a sala e os bonecos não fizeram “puf” e se desvaneceram da frente dos seus olhos. Então ia ser-lhe mais difícil acordar do que inicialmente pensara. Mau, mau. – Mas eu ainda quero saber porque…
- Estamos a falar consigo a meio da noite, e porque não está a apodrecer na sua cama? – Embora Emma não o tivesse posto naqueles termos tão crus, a sua resposta foi um aceno afirmativo, que deixou os dois bonecos a mexerem nervosamente os seus braços e madeira e a entreolharem-se com os olhos de tinta preta. – Fácil, moça, fácil. Mabbs, contas-lhe tu ou conto eu?
- Contas tu. – Replicou esta, sem uma só pausa em hesitação. Quando o outro gemeu, esticou o braço e deu-lhe um piparote no chapéu alto. – Tem tento, homem! Até agora ela está a aceitar tudo muito bem.
- Obrigada. – Apesar de tudo, Emma não sabia com absoluta certidão se de facto a tinham elogiado. Nunca antes estivera numa situação em que houvesse a necessidade de detectar emoções em vozes de bonecos, que tinham para ela tanto de humano, emotivo e reconhecível que só o que diziam registava, independentemente do sentimento expresso. As expressões faciais do par, essas já eram mais fáceis de identificar. Não imaginava que madeira fosse tão maleável ao ponto de os deixar sorrir, franzir o cenho e, no caso de Theo, fazer ar de quem ponderava.
- É, ela está, não está? – A cabeça deste, que era talvez um pouco maior que um berlinde de tamanho médio, levantou-se para estudar a rapariga com um certo calculismo. – Porque é que não está a entrar em pânico, moça? Não é para ofender, mas é o que a maioria faz. Bonecos não falam e estão a falar comigo, ai meu deus, estou a endoidecer, essa coisa toda. Você não. Qual é a sua?
- Nenhuma. – Respondeu ela, honestamente. – É só que…bem, isto é um sonho, não é? Posso acordar a qualquer momento que queira, por isso porquê perder tempo a fazer escândalo?
................Mabel e Theo soltaram uma sucessão simultânea de “Ahhhs” e “Uhmms”.
- Sonho, é? – Mabel não era capaz de fazer sorrisos amarelos, pois a sua boca estava pintada com um vermelho tão vibrante que o tornava impossível, mas tentou. – Continua a acreditar nisso enquanto podes, porque estás prestes a ter uma surpresa. Theo? – Theo, de má vontade, limpou a garganta.
- Tudo bem, cá vai a primeira pergunta: acreditas que há mais segredos neste mundo do que aqueles que nos são dados a ver, que há muito que o homem não compreende ainda, que há forças ocultas em acção sobre o nosso dia-a-dia que superam a realidade como a concebemos? Emma Hanover… – A sua voz baixou de tom, e desta vez até ela compreendeu que o boneco procurava dar ênfase ao discurso com aquela interrupção tão exageradamente dramática. – …você acredita em magia?
...............Emma não precisou de pensar na resposta.
- Sim. – Theo deixou cair o queixo. Literalmente. A peça de madeira que compunha a sua queixada saltou do lugar e caiu na mão dela, de onde ele e apanhou e se apressou a recolocá-la. Mabel estava siderada.
- Sim? – Repetiram, como se acreditassem ter ouvido mal.
- Sim. – Repetiu Emma, como se acreditasse que repetindo os convenceria. – Sim, eu acredito.
……………Novamente o par entreolhou-se, para depois se virar a ela como um só.
- Porquê? – Disseram, com palpável cepticismo. Emma deixou descair os ombros, coçou a linha de cabelo imediatamente acima da sua orelha, franziu o nariz e levantou os ombros outra vez.
- Isto é Cráduma. – E como nenhum dos bonecos deu mostras de ter entendido o que ela pretendia transmitir-lhes com aquilo, ou dado sinal de que o consideravam uma resposta aceitável, ela deduziu que o seu subconsciente se esquecera de lhes fornecer alguma informação vital. – Cráduma, sabem? Temos o Instituto Colonial, a melhor escola de ciências paranormais do Pequeno Continente.
……………Essa era uma afirmação cento e dez por cento verdadeira. O Instituto Colonial era a melhor escola, mas se isso se devia à qualidade do ensino ou ao facto de ser a única escola de ciências paranormais que havia no Pequeno Continente, essa era uma questão por esclarecer. Não ensinavam magia lá, claro. Para aprender isso, os estudantes interessados teriam de embarcar em direcção ao Grande Continente, onde segundo Emma ouvira dizer existiam universidades dedicadas só a esse curso. Contudo, o Instituto fazia um bom trabalho em dar as bases para que não existisse uma pessoa que fosse em toda Cráduma que pudesse negar a existência do sobrenatural. Emma não negava.
- Bah! – Cuspiu Theo, com desprezo. – Biocriacionismo e ocultismo, é disso que está a falar? Isso não é magia, moça! Estamos a falar de poderes a sério. Você sabe, o género de poder que arrepia as pontas dos dedos e deixa os cabelos em pé! – Emma estava a pensar no professor Marlow, que ensinava ocultismo e tinha a cabeleira mais frisada e arrepiada de que havia memória, mas não disse uma palavra que fosse sobre isso ao boneco que saltava para cima e para baixo na sua mão, cada vez mais impaciente. – Fique-se pelas brincadeiras de crianças, e não irá a lado nenhum, oiça o que lhe digo!
- Eu vou voltar para a cama. – Declarou ela, uma afirmação estranha se recordasse que ainda estava dentro de um sonho. – Talvez se eu me deitar este sonho acabe, e eu poderei regressar ao da tarde de amora. Não é que não esteja a gostar da conversa, mas…tenho pouco tempo para isto, e gostaria de o gastar em coisas que fazem sentido para mim. Nada disto faz.
- Mas…
- Mas…
- Não tenho tempo. Desculpem. – E apesar de isso não silenciar o coro de protestos das duas figurinhas, teve o efeito de repentinamente a deixar a sentir-se muito melhor consigo própria. Theo tentou baixar-se e morder-lhe os dedos quando ela lhe pegou pelo chapéu e o colocou sobre a pequena plataforma de madeira em frente à abertura do relógio. Mabel tentou lutar mais, e chegou a espetar-lhe a ponta de uma bota com santo de agulha a meio da linha do coração, mas seguiu por caminho idêntico. Emma desceu da poltrona para o chão e olhou para cima. Theo agitava um punho fechado na sua direcção, e Mabel arranjara maneira de colocar uma mão em frente da sua boca para o impedir de lançar para o ar aquilo que ela suspeitava ser uma enchente de impropérios. – Desculpem! – Disse uma vez mais, antes de contornar os colchões dispostos pelo chão e abandonar a sala para subir até ao segundo andar, com todo o intento de se deitar na cama e passar para o sonho seguinte. Que, com sorte, envolveria omeleta e coelhos a pular pelos prados, em vez de bonecos com discursos muito suspeitos.
……………Quando Emma desapareceu de vista, o casal entreolhou-se e suspirou.
- Tempo perdido. – Resmungou Theo. – Ela não nos ouviu. - Mabel foi um pouco mais entusiasta.
- Nada está perdido. Afinal…- Ao som da sua voz, um “TIC” fez-se escutar. -…ainda só perdemos um segundo. – Com um “TAC” que abanou toda a estrutura do relógio, os ponteiros caíram ambos no número doze e o badalo endoideceu. O mundo rearranjou-se em torno desse som. Theo resmungou qualquer coisa que se perdeu mal o som da primeira badalada se fez escutar, sobrepondo-se com o de um outro relógio distante, para quem a meia-noite também viera tarde demais. Por toda a cidade, por cima da tempestade em fúria, a contagem do tempo reiniciou-se como normalmente. Mabel sorriu e levantou os braços acima da sua cabeça, assumindo uma pose de ballet.
- Começou!
Moggo
Moggo
Cheguei!

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